O HOMEM INTEGRAL, UM LIVRO ATUAL


João Batista de Castro Júnior. Doutor em Linguística e Cultura pela UFBA. Professor da Universidade do Estado da Bahia, campus Brumado, inclusive na Pós-Graduação Sociedade e Linguagem, e ex-Professor da Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR), em Vitória da Conquista, tendo em ambas lecionado Introdução à Filosofia, Direito e Linguagem, Sociologia da Linguagem e Introdução à Antropologia e à Sociologia.

Publicada originariamente em 1990, a obra O homem integral, de Joanna de Ângelis, fruto do intercurso mediúnico com Divaldo Franco, tem espantosa atualidade para esse momento de alta octanagem emocional na sociedade brasileira, por trás da qual há comportamentos neuróticos percebidos através de pistas linguageiras deixadas aqui e ali.

Nessas horas, como gosta de lembrar a Análise do Discurso, a sabedoria proverbial alemã do Der Teufel steckt im Detail –  traduzível como “o Diabo mora no detalhe” – é de extrema utilidade analítica. Com tal bússola discursiva, guiada pelas lentes dessa obra de psicologia espírita, pode-se tentar desenhar, ainda que imprecisamente, os bastidores da efusiva e buliçosa linguagem que aparece com tanta ostensividade nas redes sociais de comunicação, que são de logo enquadráveis nestas palavras da autora: “Os extrovertidos conquistadores ocultam, às vezes, largos lances de timidez, solidão e desconfiança, que têm dificuldade em superar. Suas reuniões ruidosas são mais mecanismos de fuga do que recursos de espairecimento e lazer” (p. 45).

neurose da solidão, como ela denomina, esconde muitos aspectos ocultos, um dos quais é o medo, pois, “na luta furiosa, as festas ruidosas, as extravagâncias de conduta, os desperdícios de moedas e o exibicionismo com que algumas pessoas pensam vencer os medos íntimos apenas se transformam em lâminas baças de vidro pelas quais observam a vida sempre distorcida” (p. 24-25).

Nas causações poliédricas das neuroses, os mitos jogam igualmente considerável papel. Aqueles que regeram a humanidade por séculos sempre apresentaram um deus vingador e punitivo, a exemplo, na tradição judaica, de Adão e Eva expulsos do paraíso por uma falha que não mereceu o amoroso perdão de um pai, ou do mito de Prometeu, que, por entregar o fogo aos mortais, o que metaforiza o advento da técnica, foi castigado impiedosamente por um Zeus enciumado e possessivo, na mitologia pagã.  

Esse amedrontamento mítico foi em certa medida demolido a partir sobretudo do pensamento cartesiano na celebração da descoberta induzida pela dúvida científica. Mas isso a seu turno trouxe consigo outros mitos: “A fé cega substituída pela ditadura da razão destruiu ou substituiu os mitos nos quais se sustentavam os homens, apresentando outros”, diz então Joanna (p. 89). Mesmo admitindo que essa substituição tenha tido lá seus benefícios, os medos apenas mudaram de alocação com as inovações científicas, pois, se por um lado, o ser humano passou cada vez mais a suspeitar que os limites do seu conhecimento eram acanhados, por outro, passou a desconfiar que aquilo que nem ele nem a ciência sabem é assustador. 

Os novos mitos são, assim, outro cimento para o mesmo edifício de inseguranças, ainda mais que, quanto mais se conhece, mais se teme o desconhecido. Embora pareça contraditório, essa angulação ajuda a explicar a procura apressada e superficial de novidades, porque elas são buscadas na tentativa de tapar os buracos do medo, quando, em realidade, podem é estimular o mecanismo da supercompensação, como bem dizia o psicanalista austríaco e médico psiquiatra Alfred Adler. Mesmo tendo aberto larga divergência teórica com Freud, Adler admitia que os sintomas neuróticos são fundamentalmente defensivos, já que o neurótico amedrontado supercompensa sua baixa autoestima e sua insegurança buscando o autoengrandecimento com a necessidade recorrente de mostrar seu valor, quase sempre fazendo seus atos ser acompanhados de arrogante desqualificação do mérito alheio ou mesmo de equiparações fictícias.

Por trás disso não está senão o medo, adverte Joanna de Ângelis: “O medo de ser deixado em plano secundário, de não ter para onde ir, com quem conversar, significaria ser desconsiderado, atirado à solidão” (p. 28). Por isso que se ostenta ruidosamente uma felicidade abrigada no acesso ao poder mítico da ciência, com a "terrível preocupação para ser visto, fotografado, comentando, vendendo saúde, felicidade, mesmo que fictícia” (ib.).

Essa ambientação cultural regida pelo mito da onisciência científica, o que inclui a psicofarmacologia, que chegou a transbordar para fora do âmbito rigoroso das prescrições médicas, é, na verdade, uma das raízes neuróticas, pois suas ficções de felicidade tanto podem induzir isolamento até o limite de uma fobia social quanto podem fazer o indivíduo tomá-las como o parâmetro inflexível da vivência coletiva ordenada. Neste último sentido é que pode ser lido o seguinte trecho da obra: “A violência, que irrompe desastrosa, arma os novos Rambos com equipamentos de vingança em nome da justiça, enfrentando as forças do mal que se apresentam numa sociedade injusta, promovendo lutas lamentáveis, sem controle” (p. 48).  Segundo ela, nesses momentos, se “descamba para o grotesco, fomentando o pavor, ironizando os valores dignos e desprezando as Instituições” (ib.).

A autora não minimiza o papel primoroso das religiões, capaz de diminuir “o volume da violência”, pois “sem o mito da salvação pela fé, toda essa potencialidade seria canalizada na direção da agressividade destruidora” (p. 90). Mas também adverte contra os desencontros religiosos, porquanto “nas várias escolas de fé espocam a rebelião, as disputas lamentáveis, a maledicência ácida ou o distanciamento formando quistos perigosos no corpo comunitário” (p. 69).

Sua abordagem, que passa pela compreensão de que o Inconsciente de cada indivíduo “está sempre a ditar-lhe o que fazer e o que realizar” (p. 123), sugere então “uma nova conduta e, para isso, a psicologia profunda se torna o estudo de uma nova linguagem libertadora” (p. 121), ou seja, “uma nova linguagem que rompa com o atavismo, com a memória da sociedade, acumulada de símbolos, falsos uns e inadequados outros” (p. 122), o que significa dizer uma linguagem “sem autopunição, sem autojulgamento, sem autocondenação” (p. 121), implicando, por consequência, “renovar-se sempre para melhor, agindo com correção, sem consciência de culpa, sem autocompaixão, sem ansiedade, viver o tempo com dimensão atemporal" (p. 121-122).

Essa fisionomia, em arremate, fará com que a "sociedade amedrontada" (p. 25) ceda lugar a novos símbolos que se incorporarão pouco a pouco "ao cotidiano, ensinando disciplina, controle, respeito por si mesmo, aos outros, às autoridades, que no homem se fazem indispensáveis para a feliz coexistência pacífica" (p.49).

Enfim, esse livro, que tem outros relevantes aspectos aqui não focalizados, merece ser lido e relido por ser inegavelmente, como diriam os romanos, um lectio magistralis.

Vitória da Conquista, 29 de maio de 2020.

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