247 BRASIL - Ferrovia Bioceânica: protagonismo chinês em uma nova ordem global é 'imparável', diz analista
Ferrovia e a bandeira da China (Foto: PPI.Gov.Br I Reuters)
O Peru anunciou que vai buscar uma reunião junto ao Brasil e à China para avançar no projeto rumo à criação de uma rota conectando o Brasil ao Pacífico
247 - Especialistas apontam que a criação de corredores conectando a América Latina à Ásia pode fazer da região um hub industrial e fomentar o desenvolvimento local com o apoio da China, algo que vai contra os interesses de Washington. O Ministério da Economia do Peru anunciou recentemente que vai buscar uma reunião de alto nível junto ao Brasil e à China para avançar no projeto da Ferrovia Bioceânica, que cria uma rota conectando o Brasil ao Pacífico, de maneira a oferecer uma alternativa ao canal do Panamá, dominado pelos EUA. As entrevistas desta matéria foram concedidas à Sputnik.
A ligação interoceânica é um projeto antigo, idealizado desde a década de 1950, que ganhou impulso em 2000, com a implementação da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), assinada naquele ano por 12 países sul-americanos, com o objetivo de alavancar a integração regional. O debate ganhou mais força posteriormente, em 2008, quando a IIRSA foi incorporada ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan), criado pela União de Nações Sul-Americanas (Unasul).
Professor do Departamento de Geografia Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Vitor Stuart de Pieri pontua que o projeto da ferrovia bioceânica compete com o canal do Panamá e que um possível avanço nas discussões pode incomodar os EUA, uma vez que o governo do presidente norte-americano, Donald Trump, busca conter a influência da China na América do Sul.
"A presença chinesa tem incomodado muito Washington. A gente observa que o mundo hoje passa por um processo de decadência do Ocidente e o surgimento de novos atores globais — em especial, a China. A China está presente no mundo todo, através de estratégias diferentes dos Estados Unidos. São estratégias que buscam, que fortalecem, estão presentes mais do ponto de vista da infraestrutura, do desenvolvimento de alguns países, e não do ponto de vista mais geopolítico, de embate, de ameaça", explica.
Ele acrescenta que o canal do Panamá enfrenta um desafio de crise hídrica que preocupa os EUA, e a chegada da Ferrovia Bioceânica, como rota alternativa ao canal, reduziria a influência norte-americana, ao passo que aumentaria o protagonismo chinês na região. Diante disso, o especialista não descarta uma eventual tentativa dos EUA de boicotar o projeto, já que historicamente Washington enxerga a América do Sul como sua área de influência.
"Eu acho que os EUA podem tentar boicotar através de vias diplomáticas indiretas, ou talvez oferecer ações logísticas, o que acho difícil. Eles já tiveram várias oportunidades e não fizeram. E acho que o mais provável é através do estímulo a instabilidades políticas ou ambientais, por meio de guerra híbrida ou, enfim, utilizando ONGs, meios de comunicação formais e não formais e essas novas mídias, o que faz com que haja desgastes e gere certa instabilidade do ponto de vista institucional."
Pieri afirma que os principais desafios para implementar a Ferrovia Bioceânica serão o alto custo, que tornará necessário o investimento de empresas privadas, e questões ambientais e sociais ligadas ao impacto em áreas florestais e comunidades indígenas. Já em relação aos benefícios, o pesquisador cita o impulso aos setores do agronegócio, da mineração, portos e construção civil, além do fomento ao desenvolvimento e progresso de pequenas cidades ao longo da ferrovia.
"Cidades, às vezes, no meio do interior da América do Sul, que podem ser favorecidas com a chegada dessa ferrovia, a passagem dessa ferrovia. Isso, na verdade, toda essa questão das ferrovias, revela um avanço do modelo chinês de inserção de infraestrutura, em oposição à perspectiva dos Estados Unidos, com uma diplomacia condicionada, uma diplomacia mais voltada à perspectiva mais hegemônica, na qual os atores menores devem ser influenciados pela presença americana", afirma.
Ele avalia que a participação chinesa em projetos sul-americanos — como a Ferrovia Bioceânica e outros de incentivo aos mercados de energia e mineração — é uma amostra de que o protagonismo chinês no mundo hoje é "imparável" e "relativamente positivo", por trazer, com o BRICS, uma nova configuração geopolítica global.
"E é positivo porque esses países [do BRICS] também, em sua maioria, têm uma posição de respeito aos organismos multilaterais, ao contrário do que a gente tem observado com os países ocidentais atuando contra as decisões da ONU [Organização das Nações Unidas], do Conselho de Segurança da ONU, que está realmente desatualizado. Então essa nova ordem de geopolítica global, principalmente sob o protagonismo da China, é uma tendência que deve ficar por muitos e muitos anos."
A expansão da atuação chinesa na América Latina tem despertado nos EUA "uma grande preocupação em manter o seu ativismo na área", conforme aponta à Sputnik Brasil Gabriela Tamiris Rosa Corrêa, doutoranda em economia política internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre e graduada em relações internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pesquisadora residente do Laboratório de Estudos em Economia Política da China (LabChina) e do Grupo de Estudos em Ásia-Pacífico (GEAP).
Ela observa que, em fevereiro, sob pressão dos EUA, o Panamá deixou a iniciativa chinesa Cinturão e Rota e, em abril, assinou um memorando de entendimento com Washington que autorizava a presença militar norte-americana no país, contrariando o Tratado de Neutralidade entre as partes, sob alegação de espionagem chinesa.
"É o imperialismo estadunidense nu e cru. Não há evidências sobre a existência de militares da China na região ou sobre qualquer espionagem chinesa, ao contrário do que já evidenciamos na história sobre as práticas estadunidenses de interferência na América Latina", afirma a especialista.
Ela afirma que a China tem investido pesado em infraestrutura na América Latina e cita como exemplo o porto de Chancay, inaugurado recentemente no Peru, e a própria Ferrovia Bioceânica, um dos objetos centrais do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC), que faz parte do programa Rotas de Integração Sul-Americana.
"A integração sul-americana e a utilização do Porto de Chancay são fundamentais para a China, tendo em vista o novo avanço dos EUA sobre o Panamá e a crise hidrológica que tem afetado o canal, diminuindo o trânsito de navios e os fluxos comerciais. […] Dessa forma, é bem provável que incertezas geopolíticas atuais tornem a Ferrovia Bioceânica uma alternativa muito atraente para a China ao permitir a redução da dependência em relação ao canal panamenho."
Corrêa afirma que, por ser uma via naturalmente estratégica para o comércio e investimentos da China, os EUA podem ver a possibilidade de atuação do capital chinês no projeto como uma ameaça à sua influência na região. Portanto, é bem provável que tentem dificultar o projeto.]
"Logo após a Colômbia ter aderido à iniciativa, Trump advertiu que os EUA vão combater energicamente os projetos da Rota da Seda na América Latina. Dado que o BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] é um dos bancos financiadores de projetos de infraestrutura na região, ele sinalizou utilizar o voto estadunidense no banco como forma de dificultar o financiamento aos países latino-americanos em projetos em que há o envolvimento de empresas chinesas", afirma.
Ela destaca que, recentemente, o secretário de Defesa dos EUA criticou a suposta influência chinesa no canal do Panamá, argumentando que o país iria "recuperar o seu quintal", o que indica a intenção de Washington de conter a iniciativa.
"A Ferrovia Bioceânica atende a uma necessidade de conectividade regional autônoma e acesso a mercados asiáticos que os EUA não têm interesse em priorizar para os latino-americanos", explica.
Em contraponto, afirma que a criação de corredores conectando a América Latina à Ásia oferece a oportunidade de transformar a região em um hub industrial, atraindo as companhias interessadas em escoar a produção de forma eficaz nesses mercados em expansão.
"Estamos diante de uma oportunidade histórica de posicionar a América Latina de maneira mais independente no sistema internacional, visto que as alternativas logísticas que estão sendo implementadas diluem o poder geopolítico dos EUA na região, enfrentam a centralidade histórica do canal do Panamá e aumentam o poder de barganha dos países latino-americanos frente aos parceiros internacionais."
Na avaliação de Corrêa, o comunicado recente do governo peruano — com o intuito de reunir lideranças de Brasil, China e Peru para avançar no projeto da ferrovia — revela o alinhamento estratégico entre os países quanto à necessidade de construir caminhos alternativos ao canal do Panamá e angariar maior autonomia frente aos EUA.
Segundo ela, atualmente, "os países latino-americanos estão se posicionando como verdadeiros propositores de projetos de infraestrutura para alavancar suas economias e conquistar o seu devido espaço no sistema internacional, e não apenas como receptores passivos de investimento externo direto".
"A partir da parceria crescente com a China, os países latino-americanos têm diversificado suas opções de financiamento, reforçando a importância do capital chinês sob termos mais negociados localmente, criando um contrapeso à influência contínua dos EUA na região e agindo de forma mais pragmática em suas relações internacionais", afirma a especialista.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas apontam que a criação de corredores conectando a América Latina à Ásia pode fazer da região um hub industrial e fomentar o desenvolvimento local com o apoio da China, algo que vai contra os interesses de Washington.
O Ministério da Economia do Peru anunciou recentemente que vai buscar uma reunião de alto nível junto ao Brasil e à China para avançar no projeto da Ferrovia Bioceânica, que cria uma rota conectando o Brasil ao Pacífico, de maneira a oferecer uma alternativa ao canal do Panamá, dominado pelos EUA.
A ligação interoceânica é um projeto antigo, idealizado desde a década de 1950, que ganhou impulso em 2000, com a implementação da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), assinada naquele ano por 12 países sul-americanos, com o objetivo de alavancar a integração regional. O debate ganhou mais força posteriormente, em 2008, quando a IIRSA foi incorporada ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan), criado pela União de Nações Sul-Americanas (Unasul).
Em entrevista à Sputnik Brasil, Vitor Stuart de Pieri, professor do Departamento de Geografia Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pontua que o projeto da ferrovia bioceânica compete com o canal do Panamá e que um possível avanço nas discussões pode incomodar os EUA, uma vez que o governo do presidente norte-americano, Donald Trump, busca conter a influência da China na América do Sul.
"A presença chinesa tem incomodado muito Washington. A gente observa que o mundo hoje passa por um processo de decadência do Ocidente e o surgimento de novos atores globais — em especial, a China. A China está presente no mundo todo, através de estratégias diferentes dos Estados Unidos. São estratégias que buscam, que fortalecem, estão presentes mais do ponto de vista da infraestrutura, do desenvolvimento de alguns países, e não do ponto de vista mais geopolítico, de embate, de ameaça", explica.
Ele acrescenta que o canal do Panamá enfrenta um desafio de crise hídrica que preocupa os EUA, e a chegada da Ferrovia Bioceânica, como rota alternativa ao canal, reduziria a influência norte-americana, ao passo que aumentaria o protagonismo chinês na região. Diante disso, o especialista não descarta uma eventual tentativa dos EUA de boicotar o projeto, já que historicamente Washington enxerga a América do Sul como sua área de influência.
"Eu acho que os EUA podem tentar boicotar através de vias diplomáticas indiretas, ou talvez oferecer ações logísticas, o que acho difícil. Eles já tiveram várias oportunidades e não fizeram. E acho que o mais provável é através do estímulo a instabilidades políticas ou ambientais, por meio de guerra híbrida ou, enfim, utilizando ONGs, meios de comunicação formais e não formais e essas novas mídias, o que faz com que haja desgastes e gere certa instabilidade do ponto de vista institucional."
Pieri afirma que os principais desafios para implementar a Ferrovia Bioceânica serão o alto custo, que tornará necessário o investimento de empresas privadas, e questões ambientais e sociais ligadas ao impacto em áreas florestais e comunidades indígenas. Já em relação aos benefícios, o pesquisador cita o impulso aos setores do agronegócio, da mineração, portos e construção civil, além do fomento ao desenvolvimento e progresso de pequenas cidades ao longo da ferrovia.
"Cidades, às vezes, no meio do interior da América do Sul, que podem ser favorecidas com a chegada dessa ferrovia, a passagem dessa ferrovia. Isso, na verdade, toda essa questão das ferrovias, revela um avanço do modelo chinês de inserção de infraestrutura, em oposição à perspectiva dos Estados Unidos, com uma diplomacia condicionada, uma diplomacia mais voltada à perspectiva mais hegemônica, na qual os atores menores devem ser influenciados pela presença americana", afirma.
Ele avalia que a participação chinesa em projetos sul-americanos — como a Ferrovia Bioceânica e outros de incentivo aos mercados de energia e mineração — é uma amostra de que o protagonismo chinês no mundo hoje é "imparável" e "relativamente positivo", por trazer, com o BRICS, uma nova configuração geopolítica global.
"E é positivo porque esses países [do BRICS] também, em sua maioria, têm uma posição de respeito aos organismos multilaterais, ao contrário do que a gente tem observado com os países ocidentais atuando contra as decisões da ONU [Organização das Nações Unidas], do Conselho de Segurança da ONU, que está realmente desatualizado. Então essa nova ordem de geopolítica global, principalmente sob o protagonismo da China, é uma tendência que deve ficar por muitos e muitos anos."
A expansão da atuação chinesa na América Latina tem despertado nos EUA "uma grande preocupação em manter o seu ativismo na área", conforme aponta à Sputnik Brasil Gabriela Tamiris Rosa Corrêa, doutoranda em economia política internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre e graduada em relações internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pesquisadora residente do Laboratório de Estudos em Economia Política da China (LabChina) e do Grupo de Estudos em Ásia-Pacífico (GEAP).
Ela observa que, em fevereiro, sob pressão dos EUA, o Panamá deixou a iniciativa chinesa Cinturão e Rota e, em abril, assinou um memorando de entendimento com Washington que autorizava a presença militar norte-americana no país, contrariando o Tratado de Neutralidade entre as partes, sob alegação de espionagem chinesa.
"É o imperialismo estadunidense nu e cru. Não há evidências sobre a existência de militares da China na região ou sobre qualquer espionagem chinesa, ao contrário do que já evidenciamos na história sobre as práticas estadunidenses de interferência na América Latina", afirma a especialista.
Ela afirma que a China tem investido pesado em infraestrutura na América Latina e cita como exemplo o porto de Chancay, inaugurado recentemente no Peru, e a própria Ferrovia Bioceânica, um dos objetos centrais do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC), que faz parte do programa Rotas de Integração Sul-Americana.
"A integração sul-americana e a utilização do Porto de Chancay são fundamentais para a China, tendo em vista o novo avanço dos EUA sobre o Panamá e a crise hidrológica que tem afetado o canal, diminuindo o trânsito de navios e os fluxos comerciais. […] Dessa forma, é bem provável que incertezas geopolíticas atuais tornem a Ferrovia Bioceânica uma alternativa muito atraente para a China ao permitir a redução da dependência em relação ao canal panamenho."
Corrêa afirma que, por ser uma via naturalmente estratégica para o comércio e investimentos da China, os EUA podem ver a possibilidade de atuação do capital chinês no projeto como uma ameaça à sua influência na região. Portanto, é bem provável que tentem dificultar o projeto.
"Logo após a Colômbia ter aderido à iniciativa, Trump advertiu que os EUA vão combater energicamente os projetos da Rota da Seda na América Latina. Dado que o BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] é um dos bancos financiadores de projetos de infraestrutura na região, ele sinalizou utilizar o voto estadunidense no banco como forma de dificultar o financiamento aos países latino-americanos em projetos em que há o envolvimento de empresas chinesas", afirma.
Ela destaca que, recentemente, o secretário de Defesa dos EUA criticou a suposta influência chinesa no canal do Panamá, argumentando que o país iria "recuperar o seu quintal", o que indica a intenção de Washington de conter a iniciativa.
"A Ferrovia Bioceânica atende a uma necessidade de conectividade regional autônoma e acesso a mercados asiáticos que os EUA não têm interesse em priorizar para os latino-americanos", explica.
Em contraponto, afirma que a criação de corredores conectando a América Latina à Ásia oferece a oportunidade de transformar a região em um hub industrial, atraindo as companhias interessadas em escoar a produção de forma eficaz nesses mercados em expansão.
"Estamos diante de uma oportunidade histórica de posicionar a América Latina de maneira mais independente no sistema internacional, visto que as alternativas logísticas que estão sendo implementadas diluem o poder geopolítico dos EUA na região, enfrentam a centralidade histórica do canal do Panamá e aumentam o poder de barganha dos países latino-americanos frente aos parceiros internacionais."
Na avaliação de Corrêa, o comunicado recente do governo peruano — com o intuito de reunir lideranças de Brasil, China e Peru para avançar no projeto da ferrovia — revela o alinhamento estratégico entre os países quanto à necessidade de construir caminhos alternativos ao canal do Panamá e angariar maior autonomia frente aos EUA.
Segundo ela, atualmente, "os países latino-americanos estão se posicionando como verdadeiros propositores de projetos de infraestrutura para alavancar suas economias e conquistar o seu devido espaço no sistema internacional, e não apenas como receptores passivos de investimento externo direto".
"A partir da parceria crescente com a China, os países latino-americanos têm diversificado suas opções de financiamento, reforçando a importância do capital chinês sob termos mais negociados localmente, criando um contrapeso à influência contínua dos EUA na região e agindo de forma mais pragmática em suas relações internacionais", afirma a especialista.


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