POR QUE “ANORA” LEVOU A MELHOR
João Batista de Castro Júnior tem
Doutorado em Língua e Cultura pela UFBA e é professor da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB), onde foi docente e Vice-Coordenador do Mestrado em
Letras e Linguagens.
Na Copa do Mundo de 1982, na estreia do
Brasil contra o time da antiga União Soviética, aquela seleção, que é
considerada por muitos a melhor de todos os tempos, terminou com uma boa
exibição técnica de nossos jogadores na vitória de 2x1. Todavia, o marcador
poderia ter sido favorável ao adversário, que abriu a contagem, se o árbitro
espanhol Lamo Castillo vergonhosa e acintosamente não tivesse deixado de marcar
dois pênaltis claros cometidos pelos jogadores brasileiros. O episódio reforçou
um discurso muito murmurado aqui e ali com muita razão pelos comunistas durante
a Guerra Fria: “nunca irão deixar a União Soviética ganhar uma Copa”.
A Europa Central, mesmo com certa autonomia
para falar certas coisas, mas que nunca disfarçou bem a relação de capatazia política
e ideológica, sobretudo naquela época, fazia o jogo dos EUA: se os ianques não
sabiam jogar futebol, a acirradíssima disputa esportiva nos jogos olímpicos, sobre
qual regime econômico era mais capaz de produzir campeões saudáveis, não seria decidida
pela habilidade soviética no futebol, pois já bastava a inquestionável
superioridade no campo da literatura, sem similar ontem, hoje e, posso
vaticinar, no futuro em terras norte-americanas. Afinal, não se produzem
Dostoievskis, Tolstois, Gorkis etc com espetáculos de cassino.
Esse pequeno respigo geopolítico, que
atravessa a disputa, surpreendentemente nunca é percebido por certos críticos
brasileiros de cinema, sempre ciosos de conhecerem, de cabeça, datas, nomes e
sobrenomes dos artistas, além de se deleitarem em simplesmente repetir fofocas
que leram pela imprensa de língua inglesa, pululando de entusiasmo que lembra o
de uma criança que vai à primeira vez à Disneylândia. Pra ficar mais fácil essa
compreensão: é como se o cinema fosse um desfile de modas (embora Hollywood não
deixe também de sê-lo) em que o trabalho crítico se limitasse a analisar o que
se desenrola na passarela sem nunca se perguntar sobre o que estranhamente ficou
fora dela.
Com certa ingenuidade terceiro-mundista, esse
tipo de crítico brasileiro parece ainda teimar em acreditar que aquela frase em
latim, “ars gratia artis”, que aparece acima do leão que ruge na abertura dos
filmes da Metro-Goldwyn-Mayer, traduzível como “a arte mira exclusivamente produzir prazer estético” – copiada
de “L’art pour l’art”, de Baudelaire –, seja de fato a melhor leitura para as votações que ditam os
ganhadores do Oscar.
O filme “Anora” – que, não se pode esquecer,
é dirigido por um estadunidense, e não por um russo – não esconde a velha
cortina ideológica de enaltecimento dos valores ianques que, em realidade,
enfrentam avançada corrosão pela deterioração econômica e fiscal, com
consequente ameaça futura a seu capital geopolítico, pelas condições cada vez
mais indignas de trabalho e saúde para os próprios americanos, e ainda pelo
consumismo destrutivo da Natureza e por suas licenças morais, sendo estes dois
últimos os principais argumentos que os russos – falando nesse ponto por toda a
Ásia e Oriente de um modo geral – sempre brandiram no campeonato discursivo travado
com os EUA.
Quando “Anora” retrata então que até oligarcas
russos se esbaldam com o que o capitalismo-raiz dos EUA ainda pode oferecer,
desde que se tenha muito dinheiro para torrar, a ideologia carregada por uma
Hollywood cada vez mais decadente, e já sem o glamour das décadas de 1950-1970,
se sentiu representada e contemplada.
O ponto alto do filme, que pode ter passado
despercebido, nem é aquele “plot twist” do final, mas sim a alegria esfuziante
do personagem Ivan “Vanya” Zakharov, filho de um bilionário
russo, em poder possuir a cidadania americana. Ou seja, ali se pretende a
Rússia em humilhante capitulação de joelhos perante tio Sam, levada ao extremo
quando o padrinho russo Toros, interpretado por Karen Karagulian, nascido na
União Soviética, que injustamente não foi nem ao menos indicado ao prêmio de
melhor ator, constata que a nova geração que vive nos EUA não dá importância
alguma aos valores tradicionais de que tanto se orgulha a pátria-mãe.
Hollywood
realmente não tolera Trump, que passa como um trator até sobre seus aliados,
mas nem por isso deixa de ser trumpista em gostar de vender suas mercadorias e
seus valores como bom comerciante que todo ianque é. Portanto, um herdeiro russo
bilionário infantilizado sob o poder das drogas, incapaz de conquistar alguma americana
de “boa estirpe”, mas que aparece comprando o desprezível amor de uma
prostituta que mora no subúrbio ferroviário, é um presentaço para um império
que vive às tontas por estar em declínio.
Nessas
horas, esse fio temático tem que passar à frente de qualquer outra produção,
por mais bela e refinadamente artística que seja, tal como “Ainda estou aqui”,
capitaneada pela deslumbrante atuação de Fernanda Torres, como há muito tempo
não se vê nas películas nativas dos EUA. O filme nacional está de parabéns. Ao
contrário de “Anora”, inspira profunda paz e elegante dignidade ao mostrar a resistência
emocional de uma mulher recimentando, com as lágrimas do silêncio, os tijolos
familiares, para evitar desagregação, e mostra que há poética possível na
superfície mesmo com os uivos vindos dos porões da brutalidade mais sórdida.
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