BRASIL 247: Fake News são do mal. O poder nefasto da mentira

 

                                                   Fake news que matam (Foto: Miguel Paiva)

A mentira é um fenômeno universal, presente em todas as culturas e épocas da história humana. Ela provavelmente surgiu com o desenvolvimento da linguagem


Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis



“O senhor sabia que a ministra Marina Silva apareceu num evento no Rio Grande do Sul usando uma bolsa da marca ‘Hermes’ avaliada em R$ 52 mil reais?”, perguntou o taxista logo depois que me acomodei no veículo, na plataforma do aeroporto de Guarulhos e dei o endereço da minha casa. Como, Marina Silva se exibindo aos gaúchos com uma caríssima bolsa Hermès? Vi na minha mente a figura magrinha da ministra, sempre com suas roupas simples e suas bijuterias de artesanato indígena. Não, aquilo simplesmente não era possível. E perguntei ao taxista: “Mas de onde você tirou essa informação ?” E ele: “Tá todo mundo falando nas redes. E eu estou conectado a uns sites que me mandam mensagens que revelam os podres dessa gente do governo, um bando de vagabundos, uns falsos que posam de santos mas na verdade são bandidos da pior espécie”. Nesse ponto resolvi cortar a conversa, antes que aquele homem intoxicado por notícias falsas produzidas por algum dos vários gabinetes do ódio que continuam por aí produzindo seu material espúrio, começasse a espumar de raiva. 

Ao chegar em casa fui checar a informação para entender que loucura fora aquela. Não deu outra. Na verdade, a bolsa que a ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas usava era da marca nacional Veryrio e custa cerca de R$ 250. Mas a informação errada foi amplamente compartilhada nas redes sociais, e prontamente desmentida por verificadores de fatos e pela própria assessoria de Marina Silva.

Depois do episódio, fiquei pensando na fala daquele taxista. Sobretudo na sua voz, ao tentar me convencer de que aquela mentira era verdade. Havia nela uma vibração de ódio, um desagradável tom raivoso, e foi fácil entender porque aquele camarada se deixara seduzir e convencer por uma fake news tão improvável. Era exatamente aquele estado de alma raivoso o fator que o impedia de exercer minimamente o seu juízo crítico e perceber que a notícia era falsa. Mais que isso, o empurrava para a descarga de parte daquela energia que o corroía por dentro para cima do primeiro que lhe surgisse à frente. No caso eu, pobre passageiro que teve o azar de entrar no seu carro.

Lembrei-me de vários casos análogos em que tive de enfrentar pessoas intoxicadas pela força maléfica das fakes. Durante a última campanha eleitoral para a presidência da república, um grupo de mulheres lideradas por uma médica bolsonarista começou a me mandar mensagens de apoio ao adversário de Lula. Percebi logo que os textos dessas mensagens eram escritos por profissionais com bom domínio das técnicas de redação. Todo jornalista de texto, após anos de experiência, sabe reconhecer rapidamente se aquele material foi escrito por um amador ou por um profissional. A redação jornalística tem cacoetes, formuletas, tem um jeito particular de ser que a torna facilmente reconhecível por quem é do ramo. Assim, ao perceber que o grupo (duas integrantes dele eram minhas amigas) estava sendo engambelado por algum gabinete do ódio, escrevi para elas e disse isso. Antes tivesse ficado quieto! A reação delas foi tremenda. Me cobriram de insultos, me chamaram de idiota, pareciam um bando de hienas dispostas a me dilacerar. Achei melhor acabar logo com aquilo e acionei uma das coisas mais importantes que existem na Internet: o botão para deletar. Mandei todas elas para o inferno. Providência inútil, pensei depois: elas já estavam lá.

Mas guardei na memória o modo raivoso, intolerante e irracional expresso na reação daquelas mulheres. Ele provinha daquele mesmo núcleo psíquico interno cheio de ódio e rancor que descrevi acima ao falar do taxista.

É exatamente esse núcleo que os criadores de fake news querem atingir quando produzem suas mentiras. Simplesmente porque sabem muito bem que, uma vez ativada essa central interna de sentimentos espúrios, a primeira coisa que acontece é a anestesia do senso crítico. A pessoa vira presa fácil: não apenas acredita cegamente na mentira recebida, por mais absurda que ela seja, como a repassa para os demais. Torna-se rapidamente um replicador da fake news. Um sacerdote da mentira. 

A mentira é um fenômeno universal e antigo, presente em todas as culturas e épocas da história humana. Ela provavelmente surgiu com o desenvolvimento da linguagem. Os antropólogos explicam que nossos ancestrais pré-históricos podem ter usado a mentira como uma ferramenta de sobrevivência, para enganar predadores ou rivais. A capacidade de mentir pode ter oferecido vantagens evolutivas, ajudando a proteger recursos e a garantir a reprodução.

Na Grécia Antiga, a mentira era um tema recorrente na filosofia e na literatura. Platão, por exemplo, discutia a “nobre mentira” em sua obra “A República”, onde argumentava que certas mentiras poderiam ser justificadas para o bem da sociedade. Já Aristóteles condenava a mentira, considerando-a moralmente errada.

Mais próximo a nós, durante a Idade Média, a mentira era frequentemente associada ao pecado e à moralidade cristã. A Igreja Católica condenava a mentira, mas também reconhecia que, em algumas situações, como para proteger a vida de inocentes, a mentira poderia ser perdoada. Vem dessa época a ideia da “mentira piedosa”, quando tenta-se justificar a mentira por compaixão.

Com o Renascimento e o Iluminismo, a mentira começou a ser vista sob uma nova luz, e a opinião dos pensadores a respeito começou a se dividir. Filósofos como Maquiavel argumentavam que a mentira poderia ser uma ferramenta política útil. No entanto, outros pensadores, como Kant, defendiam a verdade como um imperativo moral absoluto.

Na era moderna, a mentira continua a ser um tema complexo e multifacetado. A psicologia moderna estuda a mentira como um comportamento humano comum, explorando suas causas e consequências. A tecnologia e as redes sociais também trouxeram novos desafios, como a disseminação de fake news e a desinformação.

A imensa maioria de quem estuda a matéria, hoje, condena a mentira e a informação falsa. Entre outros motivos, porque a mentira acarreta:

1. Destruição da confiança: A confiança é a base de qualquer relacionamento saudável, seja pessoal ou profissional. Quando alguém mente, essa confiança é corroída, tornando difícil restabelecê-la. 

2. Impacto emocional: Mentir pode causar danos emocionais significativos tanto para quem mente quanto para quem é enganado. A pessoa que mente pode sentir culpa e ansiedade, enquanto a pessoa enganada pode sentir-se traída e magoada. 

3. Consequências sociais: A mentira pode levar ao isolamento social. Quando as pessoas descobrem que alguém é mentiroso, tendem a se afastar dessa pessoa, o que pode resultar em solidão e exclusão. 

4. Problemas éticos: A mentira levanta questões éticas e morais. Em muitas culturas e religiões, a honestidade é um valor fundamental, e mentir é visto como uma violação desse princípio. 

5. Efeitos psicológicos: Mentir repetidamente pode levar a problemas psicológicos, como a mitomania, onde a pessoa mente compulsivamente. Isso pode ser um sinal de transtornos mais profundos, como ansiedade e insegurança. 

Apesar desses dados tão preocupantes, é fato que a mentira e o engano têm sido cada vez mais usados como armas e ferramentas de ação política. Não apenas no Brasil, mas em muitos outros lugares do mundo. Entre nós, os chamados “gabinetes do ódio” foram acusados de produzir e disseminar mentiras, conhecidas como fake news. Esses grupos, que funcionaram largamente durante o governo Bolsonaro, foram alvo de investigações da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal. As investigações apontaram que esses gabinetes espalhavam notícias falsas e mensagens agressivas contra adversários políticos. Tais ações tinham o objetivo de influenciar a opinião pública e atacar opositores do governo, utilizando redes sociais e outras plataformas digitais para amplificar o alcance das mentiras. 

Mas, mesmo sem se importar com as consequências legais de seus atos, seria bom que os profissionais da mentira, bem como aqueles que irresponsavelmente as replicam, refletissem um pouco sobre a “Lei do Retorno”. Trata-se de uma crença amplamente difundida que sugere que nossas ações, sejam boas ou más, retornam para nós de alguma forma. Essa ideia é encontrada em praticamente todas as culturas, filosofias e religiões, tanto as primitivas quanto as modernas, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Sem falar da tradicional sabedoria popular com seu princípio universal do “Você colhe o que plantou” 

E há também a ciência, especialmente na área da neurociência. Ela desenvolve agora estudos sobre os neurônios-espelho, que mostram como nossas ações e comportamentos podem influenciar e ser influenciados não apenas pelos nossos próprios atos, pensamentos, emoções e sentimentos como também pelos outros ao nosso redor. Embora não seja ainda uma “lei” científica no sentido estrito, a ideia de que nossas ações têm consequências que retornam a nós é amplamente reconhecida.

Portanto, melhor ter cuidado com a mentira. Quem mente hoje poderá ser “mentido” amanhã. 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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