UMA SINDICÂNCIA SINDICÁVEL

 



UMA SINDICÂNCIA SINDICÁVEL

João Batista de Castro Júnior é professor adjunto do Curso de Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), onde leciona Teoria da Constituição e Teoria do Processo, e Doutor em Linguística e Cultura pela Universidade Federal da Bahia.

 

Dias atrás correu por aplicativo de conversa instantânea, na sua habitual e estonteante velocidade, suposta decisão correcional de instauração de sindicância contra magistrada estadual de comarca vizinha a Vitória da Conquista, em que se apontam números processuais como retrato da lentidão na resposta jurisdicional. 

Foi o suficiente para que se incendiassem os ânimos inquisitoriais à boca pequena contra essa personalidade judiciária, não faltando quem apontasse obtusamente, em sala de aula, falta de correlação ética entre seu discurso docente e a prática jurisdicional, como se, descontextualizados, fossem itens intercambiáveis.  

Não tive como confirmar a veracidade da existência da decisão correcional porque todo procedimento dessa ordem é resguardado por sigilo legal. Presumindo, como hipótese de trabalho, que ela seja real, a primeira indagação que aflora é: como é então que vazou? Por descuido não foi. E, não o sendo, uma apuração disciplinar pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem que se centrar na autoridade correcional, que, no mínimo, se outras razões não existirem, terá assim negligenciado um dever constitucional.

A eventual alegação, como hipotética escusa defensiva, de “interesse público”, expressão usada como ás na manga toda vez que se quer legitimar despropósitos, não convence, até porque esse interesse não está acima da proteção do sigilo, já que a vida do servidor público não pode ser atirada a uma arena de leões famintos, contra os quais não cabe recurso suspensivo depois que devoram suas presas.  Sendo assim, qualquer alegação desse tipo não se sustenta só porque os números sindicados parecem impressionar.

A propósito dos dados numéricos, convém pôr em destaque aspecto que, além do vazamento de dados sigilosos, produz inquietação. É que a suposta decisão correcional termina dando a mão à mesma palmatoada que quis desferir na sindicada: não há nela qualquer proposição solucionatória dos problemas identificados.

Não custa lembrar, apesar de óbvio, que a função de Corregedoria não é só apurar indisciplinas e desvios. É também de ser propositiva em termos de solução. Por que ao menos não se sugeriu um mutirão de decisões e sentenças? Ao deixar de fazê-lo, a autoridade correcional mostra que, na contramão do que quer fazer crer, está muito pouco preocupada com o jurisdicionado.

Aliás, de todos os números apontados com tanto gosto na inspeção correcional, ficaram de fora os que mais interessam a uma análise crítica do problema: é que pela decisão não se fica sabendo quantos processos estão conclusos para julgamento. Apenas foi dito: “foram identificados, ainda, diversos processos conclusos há longo tempo”. Quanto tempo? Quantos processos? Sem essa informação, a apuração, pra dizer o mínimo, mostra ter sido deficiente – ou tendenciosa. 

Suponha-se, por exemplo, tirando-se média aproximada com base nos outros números que foram apresentados, que existam cerca de 500 processos conclusos para sentença ou para decisão. Um mero mutirão entre 10 juízes já resolveria esse problema, pois cada um deles ficaria com 50 processos, cifra que não atrapalharia suas próprias rotinas funcionais. E não creio que, havendo tantos magistrados estaduais na região, não aparecessem ao menos 10 para ajudar uma colega.

Se o Tribunal de Justiça da Bahia, portanto, não tem essa rotina entre suas funcionalidades, deveria urgentemente implementá-la, até porque as Cortes vivem com o pescoço curvado ao império do fordismo quantitativista, que os manuais, cursos e autores de processo civil não conseguem atalhar, mais preocupados com numerosas classificações escolásticas que mais confundem do que esclarecem em termos de gestão forense.

A propósito, só mesmo muitas reconfigurações de rotinas podem ressuscitar o desejo sincero de ingresso na magistratura, porque o rigor descomunal dos Tribunais para com alguns de seus juízes de 1º grau, somado à escuridão de seus atos reservados, abalaram essa fantasia nos jovens acadêmicos que vão amanhecendo para a vida forense.

Vale recordar a esse respeito que, anos atrás, ao presidir sessão do Conselho Nacional de Justiça, o ministro Joaquim Barbosa apresentou números perturbadores: os candidatos aprovados em concursos para a magistratura não hesitam em migrar para outras carreiras quando nelas são aprovados.  Se se colocar nessa pauta a insegurança com que vivem os juízes, uma vez que as Cortes não implantam efetiva e factível rede de segurança que permita a eles proferir decisões corajosas, o quadro se torna a um tempo alarmante e desencorajador.

Esses mesmos Tribunais, entretanto, pouco têm feito para mudar tal configuração. Deixando de lado o que a imprensa pensa a seu respeito, até porque alguns setores dela costumam estar contaminados pelas idiossincrasias de não gostar de ser incomodados nos seus próprios excessos, cada vez que uma Corregedoria põe na alça de mira um magistrado de 1º grau, deveria apresentar uma explicação legitimadora da ineficiência recursal de seus respectivos Tribunais, pois estes não conseguiram se livrar da imagem pública de mastodontes dispendiosos, em lugar de origem de saudável  inspiração.

Em realidade, são tantas as imagens que circulam interna quanto externamente pelo Brasil que seria cansativo enumerar, pois vão desde pressão para que juízes mais velhos se aposentem, e deem lugar a apadrinhados que cobiçam certas comarcas, até proteção descabida em relação a magistrados que vivem de navegar nas águas da ociosidade, mas sempre aparecem sorridentes nas fotografias de eventos institucionais ao lado de seus superiores.

Fora desse ambiente de confete institucional estão os que trabalham numa notável dimensão sociológica de resolução e inibição de conflitos e teriam muito a contribuir com a remodelação democrática de seus Tribunais, se estes não permanecessem excessivamente litúrgicos e barrocos, bem ao sabor do patriarcalismo que dizia, a jeito acaciano, defender a moral aos olhos alheios, mas era impiedoso no recesso doméstico.

Nada parece ter mudado nessa fisionomia. Essa tal sindicância, se verdadeira for, repito, tem todas as notas desse característico modelo objeto da antropologia social, afinal, ao expor uma magistrada com a quebra de sigilo, mais uma vez parece querer reforçar a falácia sexista que elas, tal como se diz com impropriedade dos estagiários, são as culpadas por serem menos produtivas, quando os dados empíricos mostram que são mais imparcialmente equidistantes na hora de julgar e muito menos afeiçoadas a compadrios políticos para decidir.

As Cortes continuam lamentavelmente assim no tal mais do mesmo: quando acuadas, continuam a entregar seus juízes como repastos aos abutres das vísceras alheias a fim de deslocar a atenção de si mesmas, disfarçando muito mal que nelas é que estão todos os cânceres que corroem as esperanças do ideal do justo que ainda não deixou de ser apenas um ideal neste País, pois, parafraseando Sérgio Buarque de Holanda, Justiça por aqui segue sendo um profundo mal-entendido.  

Vitória da Conquista, 29 de julho de 2.022.


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