Coluna Sampaulices: Elomar, da caatinga para a terra da garoa


por Paulo Roque Garcia | sampaulices@gmail.com


Coluna Sampaulices: Elomar, da caatinga para a terra da garoa
Representação de Elomar em xilogravura está presente na exposição

Sabe aquele papo de que raio não cai duas vezes no mesmo lugar? Conversa fiada. No sertão da Bahia caiu, com menos de dois anos de intervalo. Um no dia 21 de dezembro de 1937 e o outro em 14 de março de 1939. O primeiro, ainda dando choque, se chama Elomar. O segundo, “ora, raios!”, é o Glauber Rocha. Sobre o fato de serem nascidos em Vitória da Conquista e nunca terem assinado algo juntos, Elomar se justifica com uma tirada típica. “Dois gigantes não habitam a mesma caverna”.
Elomar, assim como Glauber e Xangai, outra pérola local, é descendente direto do bandeirante e sertanista João Gonçalves da Costa que em 1783 fundou o Arraial da Conquista, hoje Vitória.
“Canta a tua aldeia e cantarás ao mundo”, diz o poeta. O homem que carrega o mar na última sílaba do nome, vive bem longe da costa, de costas para a civilização, onde afia o facão e veste o gibão da sua gramática universal.
 
Sorte a nossa que ele resolveu sair da toca e veio tanger seu rebanho caprino nos verdes pastos paulistas. E, ao escrever isso, lembrei de um livro do Glauber, “Riverão Sussuarana”, onde um vaqueiro conduz uma boiada do sertão rumo ao atlântico.
A Ocupação Elomar está em São Paulo, no Itaú Cultural, entre as luas nova de julho e crescente de agosto de 2015, como nos instrui o texto de abertura do cuidadoso catálogo da mostra, intitulado “Guia de Algibeira do Sertão Profundo”. Mas também ocupou o Auditório do Ibirapuera onde o trovador fez três shows. Por ironia, eu estava a trabalho na Bahia e não pude aplaudi-lo.
Prepare-se para entrar num universo low-fi, pré-internet,sem grandes requintes digitais, a não ser por caixas acústicas com sensores, que ao serem tocadas com a mão passam a tocar músicas, e pela instalação na entrada de chão batido, onde vemos um cercado de madeira e por trás um telão exibindo uma paisagem sertaneja. A monotonia da cena é quebrada, em curtos intervalos,por um barulhento rebanho de bodes e cabras com seus berros e chocalhos. Lá dentro a ambientação nos remete a casa do autor ou de um armazém de secos e molhados, com mobília e artigos típicos do sertão.
Não é a primeira vez que a paulicéia estende o tapete ao ilustre catingueiro. Em 1976, a Associação Paulista de Críticos de Arte elegeu “Na quadrada das águas perdidas” o melhor disco daquele ano.
Antes de qualquer outra coisa, fui correndo ouvir os vinis dispostos ao lado de dois toca-discos. Saudade de botar as bolachas pra rodar e mais ainda de voltar a escutar o primeiro disco que ouvi do cabra: “Nas quadradas das águas perdidas”, que me foi apresentado por um baiano “retado”, o Zé Patti e um português, o Zé Madeira, que tem esse apelido por ter nascido na Ilha da Madeira, em Câmara dos Lobos, a mesma cidade do craque Cristiano Ronaldo. Outra emoção, essa então nem lembro a última vez, foi dar play num tocador de fitas cassetes,com músicas que completam o acervo disponível.
Do meio da caatinga esse trovador medieval inspirou Henfil na criação dos personagens “Francisco Orelhana” e da “graúna”. Números do Pasquim, cadernos com desenhos, croquis, poemas, e letras de músicas manuscritas compõem o universo da Mostra.
Avesso a fotos e vídeos - um Dalton Trevisando sertão - Elomar vive na Fazenda Gameleira que ele chama de Fazenda dos Carneiros, imortalizada na música “Cantiga do amigo”. Lá, dá vida a sua obra musical e literária, uma colcha de retalhos costurada com óperas, sinfonias, concertos, peças para violão solo, ensaios, poemas, peças de teatro, roteiros de cinema e romances. E, claro, cria os seus bodes.
Como é comum aos inventores, Elomar tem glossário próprio, onde “ihambado” é mal sucedido e “derna” é desde. E isso, sem querer, faz ele se conectar a geração milênio, que torce e contorce o idioma na web, dificultando a vida dos não iniciados e dos algoritimos de buscas.Teria que ter um Google só para Elomar.
Saí da exposição. Chovia. Se a chuva não vai ao sertão, o sertão vem pra chuva, pensei. Entrei no carro, liguei o som e fui transportado do interior da Bahia pra outra baía, a de São Francisco, Califórnia. Sorri. Aumentei o volume. Que massa ser brasileiro e saber curtir de Elomar a Thee Oh Sees.

Escarafunchando a discografia do trovador:
[1968] 1° Compacto
[1972] Das Barrancas do Rio Gavião
[1978] Nas Quadradas das Águas Perdidas
[1980] Parcelada Malunga
[1981] Fantasia Leiga para um Rio Seco
[1982] ConSertão
[1983] Cartas Catingueiras
[1983] Auto da Catingueira
[1984] Cantoria 1 (Elomar, Xangai, Geraldo Azevedo e Vital Farias)
[1984] Cantoria 2(Elomar, Xangai, Geraldo Azevedo e Vital Farias)
[1985] Sertania
[1986] Dos Confins do Sertão
[1988] Concerto Sertanez
[1989] Elomar em Concerto
[1992] Árias Sertânicas
[1995] Cantoria 3
Ocupação Elomar
Itaú Cultural, até 23 de agosto.
Av. Paulista, 149. Grátis.
A programação paralela tem ainda shows da cantora baiana Jurema Paes e do maestro e músico João Omar (filho do Elomar). 


Fonte: Bahia Notícias

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